A sedução doutrinária

A pureza devida ao Evangelho vem sendo perseguida desde o início; e o gnosticismo foi a primeira e a mais perigosa heresia nos dois primeiros séculos da história da igreja. A doutrina gnóstica crê que a salvação do pecador está condicionada a um conhecimento secreto, a gnose, através do qual os humanos podem conectar-se à divindade e beneficiar-se dela. A maior parte das cartas paulinas foi escrita para combater o veneno gnóstico infiltrado no meio da igreja primitiva.

A igreja nunca conseguiu se livrar da crença gnóstica na importância de um conhecimento “secreto” específico como condição para a salvação. Nenhuma igreja evangélica defende o gnosticismo com esse nome, mas o faz com o nome de doutrina, crença correta e ortodoxia, numa relação idolátrica com o conhecimento. Todo cristão defende que para uma pessoa ser aceita por Deus, ela deve abraçar a verdade, preferencialmente conforme a cartilha doutrinária de sua igreja. O interessante em tudo isso é que a confissão de fé ou artigos doutrinários de uma igreja não são os mesmos das outras igrejas, ou seja, cada igreja tem a sua doutrina correta – a sua gnose; e essa paixão pela verdade doutrinária conforme cada igreja gera muita discussão e ofensas entre os crentes, o que mostra que a ortodoxolatria é real.

Que Jesus é o único e suficiente salvador ninguém duvida - ninguém discute – é consenso, desde que aquele que crê concorde com a doutrina da igreja que ele congrega. Ele pode não ter nascido de novo, não ser regenerado pelo Espírito Santo, não ter nenhuma relação de comunhão com Deus, mas se aceitar a confissão de fé da igreja, é um novo irmão, recebido como mais um cidadão do céu que deixou o caminho da perdição para o inferno e entrou no caminho para céu. Tudo baseado no conhecimento intelectual, informação passada por alguém (geralmente um líder), sem necessariamente uma experiência verdadeira de conversão a Deus. É a sedução doutrinária encantando as pessoas como se fosse o próprio Deus.

O gnosticismo cristão é unânime em defender que para ser aceito por Deus é necessário aceitar racionalmente uma série de doutrinas acerca de Deus conforme decisões tomadas em concílios e congressos cristãos. Deus é conforme o que a igreja diz e quem não concordar com isso é ímpio, perdido, condenado ao inferno. De um modo sutil, às vezes bem intencionado, é assim que funcionam as igrejas. A maioria dos membros das igrejas não sabe responder sobre o que diz crê, mas concorda com tudo que “o homem de Deus” fala lá de cima do púlpito. Igrejas se dividem, irmãos se ofendem, e intrigas são feitas em favor da “verdade” doutrinária. O apóstolo Paulo falou contra o zelo sem entendimento, tão comum no meio evangélico.

Mas, ser cristão é confiar na suficiência de Jesus; não é adotar um estilo de vida padronizado por alguma igreja, seguindo regras morais de “bom comportamento”. Enquanto a gnose cristã sistematiza o conhecimento de Deus se pautando na razão doutrinária, Jesus nos diz: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve”. É isso que Deus está dizendo para nós: “Em vos converterdes e em sossegardes, está a vossa salvação”. Quem vive conforme o evangelho é guiado pelo Espírito Santo e não por um mapa doutrinário.

Jesus não comunga com esse conhecimento secreto – específico das igrejas, que querem conduzir as pessoas a Deus através de um ENEM que elas mesmas elaboram para aprovar ou reprovar pessoas em nome de Deus. O acesso a Deus através da conversão intelectual a um corpo de doutrinas está muito distante do ensino e da vida de Jesus. A graça de Deus manifestada em Jesus é favorável a todos os pecadores: os desqualificados, os incompetentes, os deficientes, os intelectuais, os analfabetos, os ignorantes, os perversos, os tolos, os loucos, independentemente do acesso a qualquer conhecimento específico. Jesus disse: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”. Note que ele disse que o conhecimento de Deus foi revelado aos pequeninos – aos incompetentes, aos que se tornam como crianças sem nenhum controle das coisas, pelo contrário, entregando o controle a outro.

Ainda existem pessoas que declaram alegremente que vão para o inferno todos aqueles que não frequentam suas igrejas, ou que não conhecem suas doutrinas gnosticamente salvadoras. Isso é no mínimo desumano, arrogante, e satânico. Assim fazia o gnosticismo primitivo que defendia um conhecimento salvador iluminado e não a fé na pessoa de Jesus. “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus”. A fé salvadora consiste em conhecer a Deus e não apenas saber sobre Deus. Ser de Deus é conhecer a Palavra encarnada e não apenas a palavra explicada.

A bondade salvadora de Deus alcança pessoas em todos os lugares da terra mesmo que elas não tenham recebido a informação do evangelho, muito menos as doutrinas das igrejas. O Senhor diz: “Povos que antes nunca se interessaram por mim, agora estão me procurando. Nações que nunca me haviam procurado, agora estão me encontrando. Eu mesmo me apresentei a quem não me conhecia como Deus e disse: ‘Estou aqui, eu estou aqui’” (Is 65.1). “Por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos confins do mundo”, sem a intervenção de homem algum. Deus foi bom não apenas com Israel quando o livrou do Egito, mas também com os etíopes, os filisteus e os siros (Am 9.7). Esse é o Deus de Jesus Cristo que não seduz ninguém com doutrinas. “Mas, desde o nascente do sol até ao poente, é grande entre as nações o meu nome; e em todo lugar lhe é queimado incenso e trazidas ofertas puras, porque o meu nome é grande entre as nações, diz o SENHOR dos Exércitos” (Ml 1.11).

Quem conhece o evangelho confessa Jesus com a sua boca; mas quem conhece a Deus sem essa informação, manifesta a sua fé pelas suas obras, conforme escreveu Tiago. Apenas participar de eventos religiosos e ouvir ensinos bíblicos não torna ninguém pertencente a Jesus. Enquanto isso, “muitos virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul e tomarão lugares à mesa no reino de Deus” (Lc 13.22-30). Nem todo o que diz: Senhor, Senhor entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade do Pai, que está nos céus (Mt 7.21-23).

Confundir informação com formação é uma tática sedutora desde o jardim do Éden; confundir crença com fé tem sido o engano de muitos. Crença é o conteúdo doutrinário próprio de uma facção religiosa, expresso com palavras bem selecionadas por pessoas que se congregam com essa finalidade. A crença ajunta pessoas na mesma corrente institucional, onde objetivos, ideias, e rituais são comuns a todos que falam o mesmo dialeto doutrinário. A fé é diferente de tudo isso, ela é pessoal, particular, é um território santo entre a pessoa e Deus, sem definições nem conceitos didáticos. Como disse Jacques Ellul: “toda crença é um obstáculo à fé”. As crenças me dão a falsa sensação de segurança por pertencer a uma igreja onde faço conexões com outros que “creem” como eu. “O saber ensoberbece, mas o amor edifica”. Mesmo o conhecimento bíblico envaidece, porque a letra mata e somente o Espírito vivifica.

Antonio Francisco – Cuiabá, 7 de setembro de 2013 – Voltar para Um novo caminho.

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