Nada me faltará

A Bíblia está cheia de afirmações e promessas sobre o cuidado de Deus por nós, como: “Fui moço e já, agora, sou velho, porém jamais vi o justo desamparado, nem a sua descendência a mendigar o pão”. “E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de suprir, em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades”. O que estas palavras querem dizer? Elas significam suprimento para todas as nossas necessidades em todas as situações de nossas vidas?

Davi, o autor do Salmo 23 nasceu, cresceu, viveu, e morreu cercado de necessidades como acontece com todos os mortais. Ele enfrentou perigos, foi perseguido, correu risco de morte muitas vezes, foi traído, passou por várias privações, pobreza, fome, ausência de conforto, tristeza, angústia, depressão, e tantas outras dificuldades. A afirmação: “nada me faltará” parece não ser verdade na vida de Davi. O próprio salmo fala da necessidade de repouso, das águas de descanso, de refrigério da alma, de veredas justas, vale da sombra da morte, bordão, cajado, consolo, adversários, unção. Tudo isso mostra implicitamente necessidades e perigos. Quem repousa, senão quem está cansado? Por que a ovelha precisa de águas calmas, senão devido o perigo de afogamento? Quem precisa de refrigério para a alma senão a pessoa triste e deprimida? Por que veredas justas, senão por causa do risco de desviar-se por caminhos tortuosos? Mesmo com o pastor, as ovelhas passam por vales escuros onde feras se escondem e podem atacar o rebanho. O pastor muitas vezes usa a vara para corrigir suas ovelhas, e precisa do cajado para tirar uma ovelha presa em arbustos ou à beira de precipícios. O risco de ataques de outros animais é frequente. As feridas provocadas por insetos e brigas no meio do rebanho precisam de curativos constantes. Então, como ele pode dizer “nada me faltará?”.

A principal afirmação do Salmo 23 é: “O SENHOR é o meu pastor”. Quando o Senhor nos basta ficamos satisfeitos com a vida. “Agrada-te do SENHOR, e ele satisfará os desejos do teu coração”. “Digo ao SENHOR: Tu és o meu Senhor; outro bem não possuo, senão a ti somente”. “O SENHOR é a porção da minha herança e o meu cálice; tu és o arrimo da minha sorte”. Somente assim se cumpre o salmo em mim. Apenas o Senhor satisfaz, dá repouso, descanso, refrigério, direção, companhia, correção, proteção, suprimento, alegria, abrigo. Se o Senhor não for o nosso pastor, tudo nos faltará; o melhor repouso não vai tirar o cansaço de nossas almas, pois só Jesus dá o descanso que precisamos. O ambiente mais arejado não pode refrigerar a alma seca sem o hálito de Deus. Sem o bom pastor, as veredas da justiça facilmente se transformam em caminhos legalistas; quando a sombra da morte aparece, tudo se turva pela ausência da vida eterna. Nenhum consolo satisfaz, porque o Consolador não está presente. A mesa farta não mata a fome que somente o pão da vida supre. A casa mais confortável não abriga quem ainda não encontrou morada no Altíssimo.

O primeiro pensamento que nos vem com essa expressão: “nada me faltará”, é a provisão, como se essas palavras fossem uma espécie de apólice de seguro, a garantia de que todas as nossas necessidades serão supridas; como se Deus fosse um garçom a serviço de nossas necessidades o tempo todo. “Nada me faltará” quer dizer que não terei carências decorrentes dos meus desejos, ou seja, os meus desejos não ditam as minhas necessidades. Davi estava dizendo que, uma vez que o Senhor é o meu pastor, o meu desejo não será o meu Senhor, o meu ditador. Quando entendemos isso, nossos desejos se aquietam na certeza de que o bom pastor cuida de nós da melhor maneira que ele quer e não da melhor maneira que eu desejo. Dessa forma, deixamos de apresentar listas de necessidades para Deus e consequentemente deixamos de ter frustrações por não ver nossas necessidades (desejos) supridas. A partir desse passo, é que começamos a ter experiências maravilhosas com a bondade de Deus, pois deixamos de focar em nossos projetos para vivenciar o que Deus tem para nós.

Numa sociedade de consumo como a nossa, as palavras “nada me faltará” parecem dar a certeza de que podemos abraçar a maléfica teologia da prosperidade que ensina o crente a querer ser cabeça e não cauda, que o filho de Deus não adoece, não passa necessidades, que pode e deve viver como uma pessoa próspera em sua vida material, caso contrário, ele não está exercendo sua fé. Esse ensino é maligno, porque não condiz com as verdades da palavra de Deus, com a prática dos personagens bíblicos, e com a realidade da história daqueles que são de Jesus. O diabo enche as pessoas de desejos que se transformam em aparentes necessidades que uma vez não supridas, geram frustração, ingratidão e incredulidade, por acharem que Deus não cumpriu nelas a sua promessa de não deixar lhes faltar nada. Assim vivem multidões dentro das igrejas, correndo atrás do suprimento de seus desejos, fazendo campanhas, sacrifícios, propondo barganhas com Deus, para verem concretizados os planos de uma vida “vitoriosa” com um padrão que se ajuste ao padrão mundano de uma vida bem-sucedida. O mundo tem ditado o modelo de vida feliz que os crentes têm adotado.

O Salmo 73 mostra Asafe invejando a prosperidade dos perversos, sempre tranquilos e saudáveis. Eles falam contra Deus e mesmo assim são bem-sucedidos vivendo sem preocupações. Enquanto isso ele dizia: “Inutilmente conservei puro o coração e lavei as mãos na inocência. Pois de contínuo sou afligido e cada manhã, castigado”. Mas, quando se voltou para Deus, atinou com o fim dos ímpios. Ele os viu em lugares escorregadios e prestes a cair na destruição; então percebeu que estava embrutecido e ignorante; foi como um irracional. Depois se voltou para Deus e disse: “Todavia, estou sempre contigo, tu me seguras pela minha mão direita. Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes na glória. Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em quem eu me compraza na terra. Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre”.

Paulo tinha um histórico admirável. Ele que foi um israelita cumpridor de todos os ritos legais judeus, da tribo de Benjamim, a segunda do reino do sul, um legítimo hebreu, zeloso fariseu, vivendo irrepreensivelmente conforme a lei. Mas o que para ele, era lucro, considerou tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, o Senhor; por amor do qual ele perdeu todas as coisas e as considerou como refugo, para ganhar a Cristo. “Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me alegro no SENHOR, exulto no Deus da minha salvação”. A igreja que se declarou rica e abastada e que não precisava de coisa alguma, foi considerada infeliz, miserável, pobre, cega e nua, porque deixou Jesus de fora.

Antonio Francisco - Cuiabá, 1 de agosto de 2012 - Voltar para Série sobre o Salmo 23.

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