A prática do progresso cristão

A segunda carta escrita pelo apóstolo Pedro mostra como se exercitar na prática do progresso espiritual. Ele escreveu provavelmente para as igrejas da Ásia Menor e não para uma igreja específica. Seu objetivo foi alertar os crentes sobre os falsos ensinos que estavam sendo divulgados naqueles dias e da apostasia que viria pela frente. O texto que vamos considerar aqui (2 Pedro 1.1-11) mostra o que Deus nos dá e o que nos pede, o que ele faz e o que nos cabe fazer.

Pedro se identifica como Simão Pedro servo e apóstolo de Jesus Cristo. Ele usa seu antigo nome de Simão. Parece paradoxal ser servo e apóstolo ao mesmo tempo, pois servo é escravo, alguém que obedece e pertence de modo absoluto ao seu Senhor; isso todos entendem, mas apóstolo como conhecemos hoje, é alguém poderoso, renomado, o líder de um ministério, de uma denominação. Porém, não é esse o significado bíblico. A palavra apóstolo significa “enviado”, alguém com uma missão e não uma autoridade eclesiástica como se conhece hoje. Há trinta e poucos anos quando conheci o evangelho, a liderança principal na igreja em qualquer sentido era um pastor. Depois resgataram a palavra bispo e mais tarde veio o apóstolo – tudo com ênfase hierárquica. Na Bíblia esses termos não tinham objetivos de poder e autoridade, mas apenas falavam de funções e atividades dentro da igreja. Dito isso, vamos ao que de fato interessa.

Pedro se identifica com seus leitores dizendo que eles obtiveram a mesma fé preciosa que ele e os demais apóstolos tinham na justiça de nosso Deus e Salvador Jesus Cristo. A fé de todos os crentes é da mesma natureza da fé dos apóstolos que andaram com Jesus, não é uma fé de segunda categoria, mas a fé comum que uma vez por todas foi entregue aos santos (Jd 3). Essa fé é baseada na bondade de nosso Deus e não em méritos humanos. A partir dessa fé salvadora podemos conhecer a Deus e Jesus nosso Senhor de modo crescente, o que resulta em experimentar a graça e a paz de Deus abundantemente, pois, Deus pelo seu poder, nos tem dado todas as coisas que conduzem a uma vida que lhe agrada. Isso acontece à medida que conhecemos Jesus cada vez mais para assim participarmos de sua glória e virtude. Mais adiante em sua carta Pedro cita a experiência que teve com Jesus no monte da transfiguração, o que ilustra a participação de sua glória. Aliás, Jesus habitou entre nós para mostrar a sua glória (Jo 1.14). A virtude de Jesus consiste naquilo que ele é (seu caráter). Nosso chamado para viver para Deus é de tal magnitude, que ele nos tem dado suas preciosas e mui grandes promessas, para que por elas nos tornemos participantes da natureza divina e nos livremos da corrupção das paixões que há no mundo.

Por isso, uma vez conscientes do que temos pela fé em Cristo, conhecimento, poder de Deus, promessas grandiosas, acesso íntimo a Cristo - devemos nos empenhar com todo esforço para desenvolver a nossa salvação, associando à nossa fé em Cristo, virtudes cristãs que nos ajudarão no crescimento espiritual. Pedro prossegue mostrando uma lista de sete qualidades que devem crescer em nós a partir da fé.

Fé. Sem fé é impossível agradar a Deus. A fé mencionada por Pedro não é um cabedal de doutrinas elaboradas por um colegiado de teólogos. Não se trata de uma lista de dogmas com artigos de fé. Ele está falando da fé salvadora, da fé pessoal dada por Deus a nós e não daquela fé natural (crença) que todos têm desde sempre. É um tanto paradoxal dizer que a fé que temos em Jesus nos foi dada por Deus, mas é isso mesmo que a Bíblia diz. Por que a maioria das pessoas não confia no que Jesus fez por elas na cruz, perdoando todos os seus pecados e ressuscitando para lhes dá uma vida abundante e eterna? É simplesmente porque não têm fé nele. Alguém pode até acreditar que Jesus pode lhe dar um emprego ou curar seu filho doente, mas ele não confia que Jesus lhe ama, lhe perdoa e lhe levará para o céu. Tudo isso de graça. Por que alguém não crer assim? Porque não tem fé em Jesus. Então, diria tal pessoa: se a fé é dada por Deus, eu não posso ser responsabilizado por não ter essa fé. Aqui é que a coisa acontece. Quando reconhecemos nossa total falência espiritual diante de Deus ao ponto de nem mesmo conseguir confiar nele e pedimos que ele nos ajude a ter tal fé, ela nos é dada sem que nada façamos, mas apenas creiamos que é assim. É por essa fé que nascemos de novo e nos tornamos novas criaturas e passamos a andar em novidade de vida. Agora sim, devemos juntar com a fé as sete qualidades enumeradas:

1. Virtude. A virtude brota da fé e fala de uma vida excelente, bondade prática, um caráter aprovado por Deus, uma vida irrepreensível. Isso não é o mesmo que ter uma vida impecável e imaculada, pois isso não condiz com a verdade prática nem mesmo com o ensino bíblico que diz: “Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós” (1Jo 1.8). A virtude implica em viver com excelência. O que é fazer algo com excelência? É cumprir devidamente alguma coisa. A excelência de uma faca, por exemplo, é cortar. A excelência de um crente é desenvolver em si o caráter de Cristo, porque essa é a vontade de Deus, que sejamos semelhantes à imagem de seu Filho Jesus (Rm 8.29). Somos chamados para o aperfeiçoamento, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo (Ef 4.12-13). A semelhança com Cristo para uma vida excelente é adquirida pela fé.

2. Conhecimento. Além da fé pessoal e da bondade prática, o conhecimento intelectual é muito importante para o crente. Nosso culto é racional e precisamos de sabedoria prática e também de entendimento espiritual - discernimento. O povo de Deus sofre porque lhe falta o conhecimento e por não conhecer as Escrituras Sagradas. Esse conhecimento passa pela informação intelectual, mas vai além. Trata-se de conhecer o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem ele enviou (Jo 17.3). Esse conhecimento implica em saber discernir não somente o bem, mas também o mal (Hb 5.14). A fé cristã não é burra, não é cega, não defende o zelo sem entendimento; ela é pensante e crescente em conhecimento, sem o qual não há progresso na vida cristã.

3. Domínio próprio. O domínio próprio é fruto do Espírito Santo (Gl 5.23) e deve ser aplicado em todos os aspectos da vida. Domínio próprio significa controlar as paixões e não ser controlado por elas. Para isso precisamos nos submeter ao controle de Cristo, como está escrito: “mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e nada disponhais para a carne no tocante às suas concupiscências” (Rm 13.14). Aristóteles chamava o domínio próprio de “a virtude divina que está além do homem”, mas que aqui sabemos ser possível para nós. Pedro está nos ensinando que o conhecimento não nos libera para os desejos carnais como ensinavam os falsos mestres, conforme é mostrado na continuidade da sua carta. Pelo contrário, o verdadeiro conhecimento de Deus nos ensina a viver com domínio próprio e não com libertinagem.

4. Perseverança. Em seguida Pedro fala da disposição mental de lidar com as dificuldades da vida, enfrentando as aflições de fora e as seduções carnais de dentro, como disse Aristóteles: “O domínio próprio tem que ver com prazeres... e a perseverança com os prazeres”. À medida que o crente amadurece, mais capaz se torna diante dos impasses e das pressões. Ele não desiste, ao contrário, persiste firme nos caminhos do evangelho que nos ensina a nos gloriarmos nas próprias tribulações, pois são elas que produzem a perseverança, a experiência e a esperança (Rm 5.3-4), porque o cristão persevera até ao fim (Mc 13.13). A perseverança como qualidade cristã não é fatalista, ela se fundamenta no conhecimento de Cristo, no poder de Deus e em suas grandes promessas. Tiago disse: “Ora, a perseverança deve ter ação completa, para que sejais perfeitos e íntegros, em nada deficientes” (Tg 1.4).

5. Piedade. Pedro acrescenta em sua lista a piedade, a reverência para com Deus e o respeito para com os homens. Aqui não há nenhum indício de religiosidade estéril como se conhece muito bem nas igrejas, onde a vida com Deus é baseada em ativismos, regras humanas, usos e costumes, dias, horários e locais sagrados. Por isso é que devemos fugir daqueles que têm aparência de piedade, mas não têm a essência da vida com Deus (2Tm 3.5). Piedade fala de uma consciência prática de Deus em todos os aspectos da vida. A devoção do cristão é um estilo de vida onde sua vida é um permanente culto para que o seu culto congregacional seja cheio de vida. A piedade deve ser exercitada pessoalmente porque ela é proveitosa para tudo (1Tm 4.7-8).

6. Fraternidade. Sem fraternidade não há piedade, pois, “se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso; pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4.20). A fraternidade não apenas identifica um verdadeiro crente, mas também possibilidade nosso equilíbrio e crescimento cristão. Não se pode conceber que uma pessoa confessa ser de Jesus, mas não ande com outros que tenham a mesma confissão, apesar das diferenças e limitações pessoais de cada um. Sem a fraternidade ficamos sem referência relacional e facilmente chegamos a conclusões precipitadas. Por essas e outras, “tendo purificado a vossa alma, pela vossa obediência à verdade, tendo em vista o amor fraternal não fingido, amai-vos, de coração, uns aos outros ardentemente” (1Pe 1.22).

7. Amor. A lista de Pedro é coroada com o amor que é a maior qualidade de um cristão. A fraternidade fala do amor entre os irmãos, mas o amor aqui mencionado, além de falar do amor fraternal, fala também do amor sacrificial, o amor abnegado que se doa em favor de outros. No amor fraternal (philia) as pessoas se confortam; no amor sexual (eros) as pessoas se satisfazem. Mas no amor sacrificial (ágape) não há necessariamente mutualidade, pois a expressão desse amor não depende da atitude do outro, mas do amor de Deus em nós que sempre visa o sumo bem da pessoa amada. Foi isso que Deus fez por nós. “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). É esse amor que ele quer que nós tenhamos. “Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos” (1Jo 3.16). É exatamente por isso que o amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado (Rm 5.5).

A partir da fé que nos torna participantes da natureza divina, podemos ver concretizada em nós essa lista de qualidades. Cada passo nos conduz ao seguinte e facilita sua realização em nosso viver. Assim, todos os passos se completam e se equilibram gerando em nós a maturidade necessária no progresso cristão. Esses passos acontecem simultaneamente em nós e não um de cada vez.

É importante ressaltar que essas qualidades já estão implícitas na nova vida que recebemos pela fé em Cristo (2Co 5.17; Ef 1.4). A existência delas em nós é a evidência de nossa vida com Deus. Uma vez que elas estão em nós, devem se manifestar de modo crescente, evitando que sejamos inativos e infrutuosos, conduzindo-nos ao pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo. A pessoa que não manifesta essas qualidades é cega para a amplidão do mundo espiritual; no máximo é um crente míope, vendo apenas o que está perto, o que é evidente e óbvio, mas sem o discernimento de uma pessoa madura. Tal pessoa chega a esquecer de sua conversão inicial a Cristo, até mesmo do perdão de todos os seus pecados antigos.

Visto que isso pode acontecer, devemos procurar com diligência cada vez maior, confirmar nossa vocação e eleição. A nossa eleição vem apenas de Deus – mas é com o nosso viver que demonstramos as qualidades mencionadas - marcas da vida cristã. Quem procede assim, obtém dois resultados: não tropeça em tempo algum e terá uma entrada ampla e honrosa no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

Antonio Francisco - Cuiabá, 16 de junho de 2012 - Voltar para Um novo caminho. Veja esse artigo em PDF.

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